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Arte, Cultura

01 de Junho de 2012 as 20h:14



MEDEIA E A TRAGÉDIA DA ALIENAÇÃO PARENTAL. por Luciane Felix


 

 

MEDEIA e a Tragédia da Alienação Parental

 

por Luciene Felix

 

 

Medeia é a famosa personagem da tragédia grega que, abandonada, assassina os próprios filhos a fim de se vingar do marido.

 

Alienação parental também é uma dissimulada forma de ‘assassínio’: independente da idade cronológica, inocentes são consciente ou inconscientemente ‘sacrificados’ como forma de retaliação a um ultraje que se acredita ter sofrido.

Nesse peculiar modo de destruição, preserva-se o corpo (soma) enquanto velada e sorrateiramente, aniquila-se a alma (psyché). E são muitos os que, embora vivos, se sentem mortos. 

Como pode o amor avizinhar-se de tamanha fúria, transmutando o que outrora era doce, no mais amargo fel? 

Antigas e ao mesmo tempo atuais, tragédias são atemporais. Será sobre as potestades que presidem ‘medéicos’casos de alienação parental, que versaremos.

Na comovente peça, escrita em 341 a.C. pelo premiado tragediógrafo grego Eurípides (Salamina, 480 – Macedônia, 406 a.C.), Medeia é a nobre (filha do rei Eétes) que se apaixona por Jasão e se empenha ferrenhamente para que ele reconquiste a elevada posição social que almeja.

Após auxiliá-lo, casar-se e gerar um casal de filhos, a estrangeira se vê traída, pois fora preterida em favor de uma nova aliança, dessa vez com a filha de Creonte. Narro o drama nesse link: http://www.esdc.com.br/audio/02.mp3

A tragédia, ao fazer emergir o embate entre o ‘pré-direito’ x ‘direito’, como diz Rachel Gazolla, no Capítulo intitulado "Para não ler ingenuamente uma tragédia grega", de sua obra “Pensar mítico e filosófico” (Edições Loyola), trata da dramatização de antigos – e até então, intocáveis valores, que alicerçavam famílias e fratrias – diante dos novos (e constantemente retocados) rumos que a pólis do discurso prenuncia.

E, na cidade, em caótica ebulição, alimentando o conteúdo desses episódios: uniões com estrangeiros, novos contratos sobrepujando os antigos, direitos antigos versus novas leis, que a retórica faz eclodir e, claro, o dramático modo pelo qual essas inescrutáveis e invisíveis instâncias – titânicas (ctônicas) ou olímpicas – se fazem notar.

Entrelaçando retórica e política à poética, as tragédias (trágos = bode + aoidé = canto) – consideradas por Aristóteles educativas por excelência, pois formadoras do espírito – remontam aos rituais que explicitam sagrados interditos e tensões que afloram quando se menospreza o peso do sagrado.

Nos primórdios “do uso de uma linguagem técnico-jurídica”, a tragédia inculca penalidades por profanação de valores, como o são o cosmos e as leis antigas (como em Antígona: http://lucienefelix.blogspot.com.br/2008/01/embate-entre-lei-divina-thmis-e-lei-dos.html ) que, quando infringidos, são tratados no sacro tribunal do Areópago, que vigia e responde pelos crimes mais graves, a saber, os de sangue.

Mas a tragédia, ritual político-religioso que visa ensinar aos novos cidadãos os antigos paradigmas aristocráticos do bem agir, aos poucos, vai se laicizando: de Sófocles a Eurípides, na Atenas de Péricles, os gregos já contam com tribunais e uma assembleia (laica e isonômica) para a discussão de grandes delitos ou corriqueiras desavenças.

Graças à logógrafos como Lísias, Górgias e Protágoras, muitas peças contendo acusações, defesas e sentenças são organizadas e devidamente arquivadas para consulta e/ou modelo: o lógos bem concatenado persuade e a retórica ameniza a penalidade ou, até mesmo, liberta criminosos.

A instância que hoje denominamos de ‘jurídico’ já está presente no modo da poesia dialógica encenada da aconselhadora tragédia. A kátharsis (purificação) não redime, mas expondo, alertando e punindo o réu diante do público, ensina.

Numa época em que cada vez mais e com maior frequência, grandes impasses entre o mundo ‘invisível’ (leis de Antígona) e o mundo ‘visível’ (leis de Creonte) começam a ser decidido na oralidade (via persuasão) o trágico emerge como reduto onde o ‘invisível’ de uma ‘justiça divina’ se manifesta sequestrando o juízo de quem a subestima.

São inúmeras as leituras e os ensinamentos a serem extraídos dos mitos e das tragédias: a vingança impetrada pelo cônjuge traído e/ou abandonado, como Medeia, é um ‘clássico’ e, por isso mesmo, atualíssimo, vide as alienações parentais.

Se o encerramento de contratos antigos fosse lúcida e pacificamente aceito... Mas como diz o amigo Kleber Sernik, “o ‘SE’ num joga”, então, perscrutemos as potências que, em fúria cega, desencadeiam o ódio.

Curiosamente, filhas do mesmo pai e nascidas no mesmo instante, gêmeas opostas, ‘estrelas’ de grandes tragédias são elas: Afrodite e as Erínias (Moiras, as Fúrias), intensas dýnamis (potência), presentes no cerne de toda polemós.

Em sua origem mítica, Afrodite, a arrebatadora deusa do amor e da atraente beleza, detentora do poder que promove a união, nasce do esperma dos órgãos genitais de Ouranós (o Céu), ceifado por Chronos (o Tempo).

Concomitantemente, do sangue vertido por tal violenta foice, surgem atentas Erínias, que governam a sinistra fatalidade do Destino, o lote de cada um nessa vida; instâncias cruéis, sob cujos domínios, nem mesmo os deuses escapam.

Uniões ilícitas (como a do inocente Édipo), amores desprezados ou ultrajados, desencadeiam guerras, vinganças, retaliações. Sabemos que o rapto de uma mulher casada, sela o fim de uma antiquíssima e rica dinastia e que a predileção de Hipólito por uma austera e casta divindade (Ártemis) em detrimento de outra (Afrodite) culmina na morte do jovem.

Expoente mor de alienação parental, pois portadora de uma terrível hamartía (marca da falta, erro), Medeia anseia pela desforra contra Jasão e, nisso, seu comportamento assemelha-se ao daqueles que militam denegrindo o ex-cônjuge. Sim, ela os mata. E afirma retirar ‘forças’ para empreender tão nefasta façanha, imaginando o martírio do ‘ex’.

Envoltos pela atér (cegueira que leva ao desvario, à ação desvairada e por fim à ruína), ressentidos, mas cônscios de que essas dissimuladas atitudes realmente afetam àqueles por quem miseravelmente nutrem aversão, alienadores parentais (independente de raça, credo, condição econômica ou grau de instrução), quando tomados por um mau daímon (a presidir furor, maldição e vingança) ignoram os incomensuráveis e muitas vezes irreversíveis danos psíquicos naquelas Almas que dizem (e até acreditam!) zelar.

Ao arregimentar os frutos do que outrora fora amor, alienadores parentais desferem-lhes sutis – mas certeiros – golpes psíquicos. Afastando-os gradativamente, física e/ou afetivamente, atingem não somente o progenitor desmoralizado, mas também negam aos próprios filhos o direito à plena eudaimonia (felicidade).

Oriundo do período arcaico, o ‘bode expiatório’ ressoa: “Recusar o sagrado não basta para retirá-los de nós”, afirma Rachel Gazolla. É no inocente – caprichosa exigência do trágico – que recai a expurgação. Sobre esses, o míasma (tenebroso que cai sobre uma família e seus descendentes).

Saibamos ler os sinais dos deuses, ponderando. A própria filosofia, “Herdeira da tragédia, saberá demonstrar que os limites da autonomia da ação não são fáceis de reconhecer, e que a reflexão para o bom agir deve ser um objetivo do homem comum.”, aponta a estudiosa.

Ampliar categorias mentais que incluam o simbolismo sagrado presente nos interditos explicitados nas tragédias – “Qual homem que não tendo qualquer autoridade a temer, se comporta com Justiça?”, indaga Platão –, nos permite reconhecer, considerar o “invisível” e respeitá-lo. Se não por legítimo amor à prole, por mera questão de bom senso mesmo.

Reconhecimento, consideração e respeito não como uma ameaça à decisão de romper um ‘contrato’ de união, pois não há mesmo como garantir o desejo de querer estar junto por toda a vida, mas como alerta à covardia que é envolver os próprios filhos numa doentia vingança pessoal, abusando de suas fragilidades, tornando-os joguete do ego ao, “medeicamente”, recrutá-los como trunfo.

   

 



Fonte: Luciane Felix





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